
Imagem: Vatican Media
Frei Gustavo Wayand Medella, OFM
Fratelli Tutti, a mais recente Carta Encíclica do Papa Francisco, foi franciscanamente concebida, gerada e apresentada ao mundo pelo Sumo Pontífice. Desde o título, ando pela cerimônia simples e solene de sua sobre o túmulo do Poverello, às vésperas do Dia do Santo de Assis, e pelo tema apresentado e proposto (fraternidade e amizade social), o documento é um atestado da pertinência e da atualidade da vida e do testemunho de São Francisco como resposta e remédio a muitos questionamentos e doenças do tempo hodierno.
Nesta breve reflexão, alguns acenos do “modo franciscano de comunicar” assumido e proposto pelo Santo Padre a partir de trechos da introdução e do primeiro capítulo da referida Encíclica. Num primeiro momento, uma breve contextualização em torno da expressão que dá o título do documento. Em seguida, o destaque de alguns aspectos do testemunho de São Francisco como iluminadores para uma prática comunicacional conforme aos valores evangélicos e, por fim, uma possível resposta franciscana a alguns desafios da comunicação atual.
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O título do documento coincide com o vocativo do qual São Francisco lança mão em sua Sexta oestação ( 6), que tem como tema “A imitação de Cristo”. Importante ressaltar que as oestações têm sua origem na comunicação oral do santo com seus confrades, especialmente a partir da pregação nas assembleias capitulares ou em outros colóquios com os irmãos. O conteúdo é marcado predominantemente por um estilo orientativo e exortativo. O conjunto completo é composto por 28 oestações que são introduzidas por citações bíblicas ou constituídas em torno de conceitos ou palavras da Sagrada Escritura.
Uma outra oestação a que o Santo Padre se refere, também no primeiro parágrafo da Encíclica, é a de número 25, continuação da anterior (24), que tem como tema “O verdadeiro amor”:
XXIV – O amor desinteressado e gratuito: “Bem-aventurado o servo que tanto ama seu irmão quando este está doente e não pode satisfazê-lo, como quando está com saúde e pode satisfazê-lo”.
XXV – O amor ao próximo e ao distante / evitar o pecado da detração: Bem-aventurado o servo que tanto ama e respeita seu irmão quando [este] estiver longe dele quando estiver com ele; e não disser por trás dele aquilo que, com caridade, não pode dizer diante dele.
A partir do conceito de proximidade e distância geográfica, o Papa destaca que o verdadeiro amor fraterno conhece fronteiras e deve se dirigir a pessoas próximas e/ou distantes, conhecidas e/ou desconhecidas. De acordo com a inspiração de São Francisco, o Santo Padre ensina que fraternidade é amar o outro de antemão porque ele é ser humano como eu sou, é filho de Deus como eu sou.
Como esforço concreto na busca da construção da fraternidade, o Papa cita a coragem de São Francisco em ir até o Oriente para se encontrar pessoalmente com o Sultão Malik-al-Kamil (800 anos em 2019), num contexto de Cruzadas, de guerra santa e de muita animosidade. Isso porque, para o santo, “a fidelidade ao seu Senhor era proporcional ao amor que nutria por seus irmãos e irmãs” (Cf. FT 3), conforme se constata na instrução apresentada na Regra não Bulada: “Quando fordes entre os sarracenos e outros infiéis, não façais litígios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus” (RnB 16).
O modo franciscano de comunicar 6j381z
Ainda no contexto da introdução, quando de certa maneira o Papa conclui a breve explicação para a escolha de São Francisco como inspirador da encíclica, o Papa Francisco apresenta, em um único parágrafo, as características que fundamentam o modo franciscano de comunicar:
[Francisco] Não fazia guerra dialética impondo doutrinas, mas comunicava o amor de Deus; compreendera que “Deus é amor, e quem permanece no amor, permanece em Deus” (1 Jo 4, 16). Assim foi pai fecundo que suscitou o sonho de uma sociedade fraterna, pois “só o homem que aceita aproximar-se das outras pessoas com o seu próprio movimento, não para retê-las no que é seu, mas para ajudá-las a serem mais elas mesmas, é que se torna realmente pai”. Naquele mundo cheio de torreões de vigia e muralhas defensivas, as cidades viviam guerras sangrentas entre famílias poderosas, ao mesmo tempo que cresciam as áreas miseráveis das periferias excluídas. Lá, Francisco recebeu no seu íntimo a verdadeira paz, libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros, fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos. Foi ele que motivou estas páginas (FT 4).
Pacífico (“Não fazia guerra dialética impondo doutrinas”) – O Santo de Assis não tinha preocupação em se apresentar como o “dono da razão” nem de impor o seu ponto de vista à custa da desqualificação daqueles que pensavam diferentes.
Amoroso (“Comunicava o amor de Deus”) – Atribuindo toda boa obra ao Sumo Bem, dedicou sua vida à busca constante de comunicar o amor de Deus em palavras e obras, pelo testemunho e pela ação.
Dialogal (“Aceita aproximar-se das outras pessoas com o seu próprio movimento, não para retê-las no que é seu, mas para ajudá-las a serem mais elas mesmas”) – A disposição para o diálogo pressupõe enxergar o outro como um dom de Deus que pode e deve ser valorizado em seus valores e opiniões.
Periférico – “Lá [nas áreas miseráveis das periferias excluídas], Francisco recebeu no seu íntimo a verdadeira paz”) – O santo não tinha ambição em disputar os primeiros lugares, entre os grandes e poderosos, mas sentia-se feliz e em paz entre os últimos. A periferia foi o lugar que escolheu para comunicar a presença de um Deus amoroso e solidário que tomara conta de seu coração e de sua vida.
Livre (“Libertou-se de todo o desejo de poder e domínio sobre os outros”) – Vencendo o desejo de posse e domínio, Francisco tem as mãos e o coração livres para abraçar, acolher e servir, comunicando dessa maneira a verdadeira liberdade dos filhos e filhas de Deus.
Pontifical (“Fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos”) – São Francisco muitas vezes destacou-se como verdadeiro construtor de pontes. Em sua vida dedicou-se à promoção da paz e do diálogo, como fez na intermediação do conflito entre o bispo e o prefeito de Assis e entre o lobo e a Comunidade de Gubbio, apenas citando dois exemplos mais conhecidos.
Desafios à comunicação e possíveis “remédios franciscanos” 1qg9
Se na Introdução da Encíclica o Papa situa o leitor em relação à influência de São Francisco, na reflexão proposta pelo documento, no Primeiro Capítulo, denominado “As sombras de um mundo fechado”, o Santo Padre se ocupa em descrever uma série de ameaças e desafios que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal. A partir de alguns apontamentos de desafios que podem ser compreendidos a partir da ótica da comunicação, são propostas algumas provocações da espiritualidade franciscana que podem auxiliar na superação de tais obstáculos.
No n.14, o Santo Padre denuncia o esvaziamento de sentido e a manipulação do que ele denomina “grandes” palavras, como democracia, liberdade e justiça. Na motivação desta ação destrutiva, o desejo de dissolver a consciência histórica e esvaziar o pensamento crítico. Aos termos descritos, podem se somar conceitos como o de família, ordem, paz, segurança etc. Como resposta franciscana a tal movimento, pode-se pensar na exortação que São Francisco apresenta na sétima oestação, que tem como título “Que a boa operação siga a ciência”. O santo de Assis destaca a importância da sintonia entre pregação e testemunho, entre discurso e vida, entre palavra e ação. A proposta franciscana é, portanto, que os valores pronunciados gerem compromisso e conversão na vida de quem os pronuncia.
Exasperar, exacerbar e polarizar são três verbos que o Papa apresenta no n.15. A exemplo do esvaziamento a que se refere o número anterior, a promoção destas três ações tem como objetivo semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante. A resposta a esse perigoso artifício poderia vir da conhecida “Oração de São Francisco” que, embora não seja propriamente de sua autoria, traduz com fidelidade a postura que procurou em vida cultivar. “Onde houver ódio, que eu leve o amor. Onde houver discórdia, que eu leve a união. Onde houver dúvida, que eu leve a fé”.
Ao n. 25, quando comenta sobre o medo gerado pelas guerras, atentados e perseguições, o Papa faz um alerta: “O que é verdade quando convém a uma pessoa poderosa, o deixa de ser quando já não a beneficia”. Ele chama atenção para o perigo de uma “verdade de conveniência”, manipulada de acordo com os interesses de quem pode mais. Recusar-se a ouvir a voz dos pequenos e marginalizados configura-se num gesto de violência e anulação do outro. A esta perigosa tentação, a humildade vivida por São Francisco e descrita por Frei Tomás de Celano pode ser iluminadora: “[Francisco] aprendera por revelação o sentido de muitas coisas; discutindo-as diante dos outros, antepunha [às suas] as opiniões dos outros. Acreditava que o parecer dos companheiros era mais seguro e que o modo de ver alheio era melhor que o próprio” (2Cel 140,12).
Um ilusório cisma instalado entre indivíduo e comunidade é denunciado pelo Pontífice ao n.31. Ele nasce de um distanciamento entre “a obsessão pelo próprio bem-estar e a felicidade da humanidade partilhada” e gera uma cultura do confronto, baseada na lógica do “quem pode mais, chora menos”. São Francisco, por sua vez, reconhece que não existe esta contraposição e que o caminho da realização humana a pela estrada do encontro fraterno. Em seu Testamento, ele mesmo associa a dádiva dos irmãos que vêm ao seu encontro com a revelação divina da forma de vida que ele e a fraternidade nascente deveriam abraçar. “E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do Santo Evangelho” (Test 14).
Ao abordar o tema “A ilusão da Comunicação”, a encíclica faz uma crítica aos riscos que podem se potencializar num contexto de comunicação digital, dentre eles um possível perigo de substituição das relações mediadas pelas máquinas ao relacionamento direto e presencial entre as pessoas quando, segundo o documento, “faltam gestos físicos, expressões de rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor e a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana” (FT 43). Diante deste possível distanciamento, o gesto do abraço e do beijo ao leproso posto em prática por São Francisco aparece como paradigma de uma atitude determinada de abrir-se à acolhida e à proximidade, construindo uma comunicação completa e transformadora.
Ainda dentro da mesma temática, outro aspecto preocupante é a contradição que aparece entre um crescente fechamento e a diminuição da distância, quando a proximidade a a ser motivada por um espírito de mera curiosidade e descompromisso com outro. Neste contexto, a intimidade, agora ível de total exposição, a a se tornar uma espécie de espetáculo. “Na comunicação digital, quer-se mostrar tudo, e cada indivíduo torna-se objeto de olhares que esquadrinham, desnudam e divulgam, muitas vezes anonimamente” (FT 42). Este comportamento produz também, com frequência, uma atitude de descarte e exclusão: “Dilui-se o respeito pelo outro e, assim, ao mesmo tempo que o apago, ignoro e mantenho afastado, posso despudoradamente invadir até ao mais recôndito da sua vida” (Idem).
Nesta mesma direção, aparece o risco de uma “agressividade despudorada” que, de acordo com o Papa “encontra um espaço de ampliação incomparável nos dispositivos móveis” (FT 44). Diante de tais perigos, mais uma vez se pode recorrer à 25, citada já no início desta reflexão: “O amor ao próximo e ao distante”. A pergunta de base que cada um poderia fazer a si mesmo é: “Como eu agiria com esta pessoa (a quem ofendo, desprezo e excluo) se ela estivesse aqui, face a face, diante de mim?”. Caridade, respeito e empatia devem ser sempre a regra para toda e qualquer relação, seja ela on-line ou off-line (presencial).
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Com a simplicidade e lucidez que lhe são próprias, o Papa Francisco adianta, logo nas primeiras linhas de sua reflexão, que a Encíclica Fratelli Tutti, é apresentada “como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras” (FT 6). A reflexão aqui apresentada, por sua vez deseja, de modo muito modesto, despertar o interesse em torno deste rico documento que o Santo Padre oferece à humanidade. O olhar escolhido foi o da comunicação. Muitas outras perspectivas podem ser adotadas. Mais importante é construir um processo que leve à sociedade da reflexão à ação, da tomada de consciência à conversão.